Samba, Música Erudita e Dança
Amor de carnaval
Quando o samba e o universo erudito se encontram na passarela
Villa-Lobos já foi homenageado algumas vezes, como em 1966, pela Mangueira, e em 1999, pela Mocidade Independente de Padre Miguel. Carlos Gomes e a soprano Bidu Sayão, respectivamente, pela Unidos da Tijuca e pela Beija-Flor, também ganharam enredos, ambos em 1995, quando houve muita discussão por conta da inserção de violinos e cantores eruditos no desfile.
De uns dez anos para cá, no entanto, não apenas personagens do universo clássico continuaram a freqüentar os desfiles -- quem não se lembra da comissão de frente da Unidos da Tijuca fantasiada de Mozart do ano passado? -- como as escolas passaram a ser povoadas por coreógrafos oriundos do balé.
A Vila Isabel, atual campeã, trouxe a bailarina Ana Botafogo, que estava na Mocidade. Já Marcelo Misailidis, que já foi o primeiro-bailarino e hoje dirige o corpo de baile do Teatro Municipal, completa uma década de avenida, cinco à frente do Salgueiro.
Esse casamento, tantas vezes criticado, parece cada vez mais consolidado no conceito de que o carnaval tornou-se um espetáculo universal. E dessa inusitada união surgem filhos curiosos, como o enredo da Arranco do Engenho de Dentro deste ano, que em seu desfile sobre as quatro estações do ano homenageará Vivaldi.
-- A nossa idéia é falar das quatro estações do ano e de como elas estão presentes em nossas vidas aqui no Brasil, onde estão relacionadas a datas festivas. O carnaval está ligado ao verão assim como São João ao frio -- diz Ilvamar Magalhães, idealizador do enredo da Arranco. -- Vivaldi será lembrado pela série de concertos em que se incluem "As quatro estações". O carnaval é um evento tão grandioso que deve estar aberto à diversidade. Vale o balé clássico ou a dança moderna. Tudo que nos aproxime do belo.
O carnavalesco Milton Cunha, responsável pelos violinos e pelo enredo-homenagem à cantora lírica Bidu Sayão, defende com unhas e dentes o intercâmbio entre as mais diversas linguagens:
-- O Sambódromo é a grande boca de cena de artistas de outros universos, é a grande cena da modernidade. Respeito a discussão, mas acho engraçado o conservadorismo, a voz que propõe uma imortalidade. Tudo tem a ver com o que está sendo proposto. Sempre vai haver um diálogo com o novo. Dizer, como disseram na época, que não se pode botar a Maria Lúcia Godoy junto com o Neguinho da Beija-Flor é conversa mole para boi dormir.
Marcelo Misailidis, com três Estandartes de Ouro na bagagem, lembra que entrou para a festa, assim como seus pares, por uma necessidade estrutural do espetáculo:
-- Quando a Unidos da Tijuca me convidou, em 1997, as comissões estavam num processo de adaptação, precisavam corresponder ao crescimento e ao embelezamento das escolas. Mas tive dificuldades iniciais com as especificações da avenida. Acho que eu e outros coreógrafos contribuímos para a festa com o profissionalismo e por entendermos o sentido de produção de um espetáculo.
Misailidis conta que no início acreditava que a linguagem da dança clássica poderia levar clareza para as mensagens sugeridas pelos carnavalescos. Depois percebeu que essa clareza poderia virar o isolamento de uma estética particular e distanciar parte do público do resultado proposto.
-- Minha contribuição foi outra. Foi o sentido de organização, a disciplina e o compromisso com o conjunto. Não é somente ensaiar. É como a produção que cuida de um espetáculo, desde o funcionamento das bilheteria até o cerrar das cortinas. Não adianta valorizar um aspecto e ficar carente por outro lado. Por isso, trabalho basicamente com pessoas da comunidade. Para não ficar limitado a uma especificidade estética.
Figura recorrente na Sapucaí desde que desfilou pela primeira vez, em 1991, na ponta dos pés, na União da Ilha, a bailarina e atriz de "Páginas da vida" Ana Botafogo é responsável este ano pela comissão de frente da campeã Vila Isabel. Ela lembra que já na sua estréia na avenida ficou deslumbrada com as diversas possibilidades que o Sambódromo oferece como um grande e potencial cenário.
-- De cima do carro alegórico eu pensava: "Nossa, é o maior público para quem me apresentei". Enquanto você evolui o público se renova, cada espectador tem um olhar diferente. Não existiam os ensaios técnicos, então era dobrar a curva e sentir a emoção direto, na veia -- conta Ana.
Quando foi convidada para coreografar a comissão da Mocidade, no ano passado, a bailarina encontrou muitas dificuldades:
-- Tive que aprender de um ano para o outro. Tive que medir cada evolução, pensar na coreografia para os jurados, onde parar. Uma loucura para uma iniciante. Sei que este ano será um pouco mais fácil. Mas tudo isso é muito profissional, cronometrado. Faço contagem de distância e de tempo, para não dar chance ao erro.
Mas sua experiência como coreógrafa e bailarina tem sido fundamental na preparação de sua comissão para o desfile.
-- Na realidade um ensaio em si não tem muita diferença. Requer disciplina, precisão. O que difere é a condição física. O bailarino dança pas de deux de dez minutos,. pára, respira, volta ao palco. Na avenida são 40 minutos ininterruptos. Então o ponto de partida para mim é a preparação física de pessoas que, muitas vezes, não têm uma atividade regular. Trabalho a parte aeróbica e o aquecimento.
Apesar de acreditar na importância do seu trabalho e de seus pares de ofício para o desenvolvimento da escola, Ana faz questão de dizer que a força-motriz sempre será o sambista:
-- Sou muito a favor das raízes do samba, da tradição. Mas acho esse casamento com o erudito viável quando há motivos, quando o enredo pede esses elementos para compor. Sem razão de ser, eu não concordo. Se forem falar de dança, da História, aí tem um motivo. Não quero tirar o lugar de pessoas tradicionais do samba.
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