Texto - Ensaio Geral
(Suzana Herculano-Houzel, julho de 2007)
Fazia 20 anos que eu não pisava em um palco - e não houve ensaio geral: fomos da sala de aula diretamente para a apresentação pública do nosso número de sapateado, que, além da coordenação dos pés, envolvia bolas de basquete quicadas, jogadas para o alto, arremessadas para as coxias e de volta para nossas mãos em plena coreografia (o tema do espetáculo era o Pan, claro). Seguir a recomendação da professora para chegar uma hora mais cedo ajudou no reconhecimento do terreno atrás das cortinas: os camarins, a passagem escura por trás do palco, as coxias. Mas nada, além do ensaio geral, nos prepara para o momento em que as cortinas se abrem e todas as luzes e olhares recaem sobre nós. Por que é tão difícil manter a concentração nessa hora?
Parte do cérebro da neurocientista de plantão entrando com os nervos à flor da pele no palco escurecido berra: "É o 'locus coeruleus' a mil com tantas novidades, preparando o cérebro para lidar com o assunto!". Mas, para o bem da coreografia, é devidamente calada e deixa que as outras de fato cuidem do assunto pelos próximos dois minutos -inclusive o tal do "locus coeruleus".
Essa pequena região do tronco encefálico é responsável por deixar o cérebro atento, pronto para a ação não só quando há uma tarefa a cumprir mas também quando o cérebro se encontra em um local novo, rodeado pelo desconhecido -como um palco onde se pisa pela primeira vez. Como o desconhecido é uma fonte em potencial de perigos à espreita, é fundamental que o "locus coeruleus" faça com que cada detalhe não familiar exija para si a atenção do cérebro. O processo é tão automático e importante que conhecê-lo não ajuda em nada. E, assim, tem-se uma neurocientista no palco lutando contra os clamores do seu "locus coeruleus" para se manter focada na coreografia e não nos refletores da platéia, no microfone no chão do palco, no plástico preto que cobre o chão, na música que mal chega aos ouvidos, nas luzes vermelhas de todas as câmeras e na pessoa na coxia para quem jogar a bola.
Para isso serve o ensaio geral, seja de peça de teatro, concerto ou dança: para tornar o desconhecido conhecido e, assim, manter calmo o "locus coeruleus" na hora H, o que deixa seu cérebro cuidar do recado em vez de ficar registrando pela primeira vez detalhes desconhecidos ao redor. Por sinal, a segunda apresentação, no dia seguinte, foi ótima. A primeira serviu como ensaio geral e deixou o "locus coeruleus" de todos nós mais tranqüilo...
(Suzana Herculano-Houzel, neurocientista, é professora da UFRJ e autora de "O Cérebro Nosso de Cada Dia" (ed. Vieira & Lent) e de "O Cérebro em Transformação" (ed. Objetiva))
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