Texto - Cantar e Dançar Mais
Iguais na Diferença
(Alcione Araújo)
Ontem, 10 de dezembro, comemorou-se os 58 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos -- documento que, pelo seu significado civilizatório, todo habitante do planeta deveria saber de cor os seus 30 sábios capítulos, e toda autoridade pública deveria recitá-los todo dia, de joelhos, ao crepúsculo. Embora o Brasil seja signatário, a Declaração é pouco conhecida entre nós, e a data tem discreta repercussão -- por razões que a história explica: as mesmas da indiferença. Instado por amigos artistas, intelectuais, produtores culturais e representantes da sociedade civil, estive Curador da comemoração deste ano -- que incluiu eventos em aglomerados, presídios, quartéis, praças, culminando, num grande show com expoentes da música brasileira. A oportunidade, a forma de comemorar e o dever da função me levam a comentar o tema que, embora universal, requer tratamento e abordagem nacionais, adequados à cultura de cada povo.
Devemos festejar não a plenitude dos Direitos Humanos -- estamos ainda longe disso, embora, convenhamos, avançamos alguma coisa. Para um povo alegre e otimista um pequeno avanço mantém acesa a esperança: e todo ungido pela esperança merece celebrar cantando e dançando. Tristeza não assegura a vitória; pode-se lutar com alegria. Ao menos, a gente se diverte.
Todo homem e toda mulher tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas, diz um capítulo da Declaração. Usando este direito alguns de nós caminhamos e cantamos braço a braço nas passeatas contra a ditadura militar -- a ditadura finou-se. Outros, ombro a ombro, ficaram roucos exigindo Diretas já -- a democracia chegou. Tantos de nós, de cara pintada, cantamos e dançamos exigindo o impeachment -- o presidente caiu. Vários de nós cantaram e dançaram ao lado do Betinho contra a fome, a miséria e pela vida -- hoje é programa de governo. Avançamos, sim! Devagar e não muito, mas avançamos. Avançamos no combate ao trabalho escravo, às diversas formas de discriminação: racial, sexual, dos portadores de necessidades especiais. No combate à violência doméstica, na defesa da criança, do adolescente e do idoso, no direito dos homossexuais. Mas ainda é pouco. A gente precisa cantar e dançar mais.
É o que deveríamos fazer todo dia 10 de dezembro -- com tantos Direitos Humanos a serem exercidos, um dia não basta; deveríamos criar a Semana dos Direitos Humanos, para envolver crianças, adolescentes, escolas, universidades, mídia -- a Semana da Pátria e do Índio contribuíram para a mudança de atitude -- e, no último dia, cantaríamos e dançaríamos pela plenitude dos Direitos Humanos. Pelo reconhecimento da igualdade essencial de todo ser humano em sua dignidade de pessoa, fonte de todos os valores, independente das diferenças de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição. Cada um é único, e somos diferentes. Mas temos os mesmos direitos: iguais na diferença.
A Declaração é Universal, propõe-se acima de nações, governos, partidos políticos, sistemas econômicos. Para além de ideologias e hegemonias, os Direitos Humanos despontam como bandeira de luta do século 21, como direito do indivíduo e do cidadão. É a nova utopia -- desgastadas as antigas e atuais --, que faltava à construção do futuro, capaz de nutrir sonhos e criar horizontes. E nesta luta a cultura tem papel decisivo.
É fundamental que os direitos do homem e da mulher sejam assegurados por lei -- as leis existem no Brasil e, diga-se, as autoridades fazem o possível para difundi-las, embora o possível fique devendo ao necessário. E a lei só pune depois de violado o direito, confiando que a punição inibe novas violações. O problema é que a lei não é cumprida. Os cidadãos e cidadãs de um país livre, em pleno estado de direito, devem exigir, de todas as maneiras, que a lei seja cumprida. Mas apenas a lei não basta.
Não sabemos conviver com a diferença -- na nossa índole autoritária, dissimulada por interesses e necessidades, quem não é como eu, é pior do que eu. É urgente a educação em Direitos Humanos para entendermos que violação, desrespeito e desprezo vêem de preconceitos ocultos lá onde só a emoção pode tocar -- o preconceituoso nem sempre sabe que o é; e, se sabe, jamais confessa. A arte tem o poder de abrir os canais da sensibilidade e, agindo na subjetividade, induzir à mudança de atitude. Entregar-se à música e à dança, rompe a armadura e baixa a guarda, deixando que a emoção dilua os preconceitos. Para sermos iguais na diferença, precisamos cantar e dançar mais.
(Alcione Araújo, 11 de dezembro de 2006)
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